quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Os ecos da intolerância

Por Renata Rodrigues*

       No dia 01/12, notícias sobre Santa Catarina tomaram os noticiários de todo o Brasil. Esqueçam os trinta homens armados e o mega assalto com ares de filme apocalíptico ocorrido em Criciúma. Foi Chapecó que chamou minha atenção, e o estrago que um só homem pode, sozinho, causar, especialmente quando é um representante eleito e que parece ecoar a intolerância de uma pequena parte da sociedade da cidade. Os ecos de tamanha intolerância atravessaram metade do país. Vieram bater no Rio de Janeiro, cidade na qual, há poucas semanas, uma polêmica tomou de assalto uma das melhores escolas do Brasil. 

    Aqui no Rio de Janeiro, há algumas semanas, um professor do Liceu Franco Brasileiro, tradicional colégio de classe média e altas da cidade, enviou um comunicado onde utilizava a linguagem neutra: querides alunes. As duas palavras bastaram para instalar a histeria coletiva. A reação de uma parte dos pais dos alunos da escola foi imediata, provocou resposta na mesma medida do colégio, que prontamente saiu em defesa do professor, e em poucos dias estava na Assembleia Legislativa do Estado na forma de um projeto de lei que quer impedir o uso ou menção da linguagem neutra em todas as escolas fluminenses. A questão foi parar na justiça. E parece muito longe de ser resolvida.

    A situação é muito parecida com a que presenciamos ontem no oeste de Santa Catarina. Um advogado, que acaba de se tornar vereador, divulgou em suas redes um vídeo denunciando uma tradicional escola de Chapecó pelo uso da linguagem neutra e pela ameaça da terrível “ideologia de gênero”. Segundo ele, foi procurado por pais de crianças que teriam feito a ele uma reclamação: um professor sugeriu o debate a respeito do uso da linguagem neutra em uma redação e estaria tentando espalhar ideologias de esquerda (sic) entre os estudantes. 

    No perfil de Fernando Cordeiro em uma de suas redes sociais, encontramos o hoje já desgastado mantra “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Apesar de batido por conta da óbvia hipocrisia que cerca boa parte das hordas bolsonaristas, a começar pelo seu representante máximo, a frase ainda é útil para nos explicar esse tipo de personagem. Ajuda a relembrar de onde vem algumas coisas. 

    Aposto que muitos ainda devem se recordar do Escola Sem Partido, movimento político criado em 2004 e divulgado em todo o país por pais e estudantes contrários ao que chamavam de "doutrinação ideológica". O movimento ganhou notoriedade a partir de 2015 quando projetos de lei inspirados em seus princípios começaram a ser apresentados e debatidos em inúmeras câmaras municipais e assembleias legislativas Brasil afora, bem como no Congresso Nacional.

    Foi importantíssimo para mobilizar parte das bases conservadoras que levariam Bolsonaro à presidência com falácias como o chamado “kit gay”. E, assim como aconteceu com a bandeira do combate à corrupção, também o combate à “doutrinação”, e à “ideologia de gênero” nas escolas mostrou-se exatamente o que é: nada além de uma lenda a ser mobilizada quando é útil politicamente. Perdeu completamente a relevância na agenda política do governo que vive de apagar incêndios, figurativamente falando, claro.

    Foi assim que figuras como a deputada estadual eleita de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL) conseguiram na política o lugar que merece: o completo ostracismo e insignificância. Causa espécie, portanto, que discursos de proto inspiração fascista ainda sirvam para eleger representantes em Chapecó.

    Talvez interesse ao advogado Fernando Cordeiro saber que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) sugeriu recentemente a alteração dos nomes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A mesma sugestão deve ser encaminhada para o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). A ideia é que os órgãos contemplem a diversidade de gênero e o princípio constitucional da isonomia e igualdade entre homens e mulheres, tornando-se Ordem da Advocacia Brasileira e Associação da Magistratura Brasileira.

    As entidades jurídicas que querem a alteração em suas nomenclaturas alegam que a iniciativa visa contemplar uma demanda das mulheres que têm aumentado sua presença no sistema de justiça brasileiro. A troca dos nomes representaria um passo significativo na luta pela representatividade no Poder Judiciário. Pretende o advogado mudar de profissão?

    Palavras reproduzem comportamentos machistas que podem afrontar o princípio da isonomia e igualdade previstos na Constituição Federal. As escolas, as entidades profissionais, a gramática e a sociedade precisam respeitar a lei para contemplar a tolerância, a reflexão e, principalmente, a mudança.

    Porque a mudança chega: foi assim com inúmeras outras questões que, graças ao feminismo a outros movimentos sociais, entendemos hoje claramente que servem apenas para preservar hierarquias e garantir desigualdades.

    Entre as imagens que chegaram até mim ontem, estavam muitos prints com comentários de alunos defendendo a escola e o professor citados. Diga-se: tanto a escola quanto o professor já descobriram decerto de ontem para hoje muitos apoiadores, entre os quais me incluo. A falsa neutralidade, o sexismo, o machismo e a necessidade de medidas de inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário de gênero são uma realidade muito fácil de entender no que depender das novas gerações. O respeito e à diversidade e a inclusão devem continuar sendo o norte de qualquer boa educação


*Renata Rodrigues é jornalista, colunista do Jornal O Globo, é ativista, e mestranda em Sociologia no Iesp-Uerj. Viveu durante seis anos em Chapecó e atualmente vive e trabalha no Rio de Janeiro*